
DAS QUADRILHAS JUNINAS ÀS QUADRILHAS FOLCLÓRICAS
As festas juninas são tradicionais no Brasil inteiro, e têm raízes muito antigas, ligadas ao mês de junho. Embora façam referência ao calendário católico, remontam a tempos anteriores à era cristã, em uma época em que diversos povos, que viviam no hemisfério norte – gregos, egípcios, bretões, sumérios, etc – celebravam o solstício de verão, isto é, a chegada desta estação do ano, fazendo rituais de invocação à fertilidade.
Posteriormente, na era cristã, o mesmo período passou a ser celebrado em homenagem a Santo Antônio, São Pedro, São Paulo e, principalmente, São João. É nestas celebrações que se realizam as quadrilhas juninas, danças populares e tradicionais em todo Brasil, embora com peculiaridades regionais e locais. Estas danças têm em Faro um caráter muito especial, vividas em Festivais de quadrilhas que mobilizam a cidade toda. Festivais que, desde 2017, são reconhecidos como Patrimônio Cultural, Imaterial e Histórico do município.
Leonardo Pantoja (Parintins) comenta sobre o festival de quadrilhas folclóricas de Faro
A dança das quadrilhas, embora tradicional em todo Brasil, tem origem na corte francesa: eram os nobres da França e, posteriormente, de outras regiões da Europa, que realizavam as quadrilhas em suas festas. Príncipes e imperadores ordenavam os passos, mas, com o tempo, foram substituídos pelos marcadores, que aprendiam os movimentos em manuais e com professores de dança.
A quadrilha chegou ao Brasil no século XIX, e, aos poucos, adquiriu gosto e contorno popular. A música clássica, antes tocada ao vivo nas quadrilhas das cortes, geralmente com piano, aos poucos foi substituída pelo toque de instrumentos como o triângulo, o acordeom e o pandeiro. As roupas mudaram suas facetas e os temas adquiriram matizes brasileiros, relacionados sobretudo com a experiência de vida nas áreas rurais, somadas pela adoção de elementos do teatro e da literatura.
É nesse contexto, isto é, de popularização das antigas festas e danças da corte, que a quadrilha junina define seus contornos no Brasil, em uma prática que mistura a tradição e a inovação, nos passos, temas, vestimentas, nas músicas, e que, em Faro, adquire características específicas – como o deslocamento da festividade, no calendário, para os meses de julho ou agosto – que, aqui, apresentaremos um pouco, enfatizando a trajetória de suas práticas, festas, competições, valores e memórias.
O que conhecemos hoje como Festival de Quadrilhas Folclóricas de Faro, amparado pela lei municipal de patrimônio cultural imaterial e histórico de número 0437/2017, é herança das antigas quadrilhas juninas, que faziam parte das festividades de São João Batista, o padroeiro do município. Tais comemorações ocorriam entre os dias 14 e 24 de junho de cada ano, e abarcavam tanto atividades vinculadas ao calendário católico e, portanto, sacras; quanto atividades seculares.
Entre as atividades sacras abarcadas pelas festividades do padroeiro, destacamos a chegada do santo à cidade de Faro, no dia 14 de junho, a romaria fluvial em torno desta chegada e as missas diárias ocorridas neste período, realizadas na Igreja Matriz de São João Batista. Entre as atividades seculares, há o arraial, para o qual a praça em frente da igreja costuma ser ornamentada com bandeirinhas para tornar o ambiente mais alegre vinculado a atividades de socialização: prática da venda de comidas e bebidas pelos barraqueiros; a realização de música ao vivo, em que se toca seresta, música popular e forró; além de, vez ou outra, ter a presença de um parque de diversões.
Cada comunidade de bairro ou escolas de bairro ficam responsáveis, em cada dia, por executar as atividades que a festa de São João Batista requeria. São chamados “noiteiros da festa”. Por um lado, as comunidades ficam responsáveis, em revezamento diário, pela liturgia das missas: quem faria a prece, a leitura da Bíblia e sobre a execução das músicas na Igreja. Por outro, esta mesma comunidade, neste mesmo dia, ficaria responsável por animar o arraial, ocorrido na praça, com as músicas, comidas – vatapá, tacacá, churrasquinho, caldo de mocotó, cachorro-quente (conhecido em Faro como quicão) – e “oferendas” (termo local para algumas comidas de status especial, que ganhavam destaque pela sua ornamentação, em geral, feita em papel celofane: frango assado, bolo-xadrez, pudim).
A dança de quadrilhas faz parte destas atividades destinadas a animar as festas de São João, e as comunidades e escolas de bairros assumem a responsabilidade por fazê-la na noite que lhes cabe a festa. Este período durou da década de 1990 até 2005, quando foram instituídas uma série de mudanças, que incluíam a data de realização da festa, o local em que ela ocorreria e o envolvimento do poder público para a realização do evento. As quadrilhas juninas, predecessoras das quadrilhas folclóricas, se reuniam para apresentação na praça de São João durante as festas juninas e disputavam as premiações, que poderiam ser grade de cerveja, fardo de refrigerante e outros bens de consumo oferecidos pela organização da festa.
Neste período, haviam várias quadrilhas e festas juninas de bairros, cada uma com suas peculiaridades, como a “Vitor Vitória”, composta somente por homens; a “Brasileirinhos” que se apresentava somente de quatro em quatro anos, coincidindo suas apresentações com a ocorrência da Copa do Mundo de Futebol; além da “Forrozando”, da “São João da América” e da “Sangue-Suga na Roça”.
As quadrilhas juninas, por sua vez, já eram herança de um movimento que começa na cidade antes dos anos 1970. Festas juninas, ocorridas no período das festividades de São João Batista, bem como outras festas do calendário católico, estavam disseminadas em Faro. Dona Carmelita Prestes da Silva (ou dona Camé, como era conhecida popularmente), Zizi e Sebastiana Pão são nomes marcantes das quadrilhas juninas ocorridas no Porto de Cima; bem como dona Belita, no Centro, e Heloísa Pinto, no bairro da Campina (os três bairros mais antigos da cidade de Faro).
Há registros, na história oral, acerca das festividades de São João que remontam a 1978, com a apresentação de uma quadrilha chamada “As Duquezinhas do Amor” que, segundo relato de Luis Rodrigues, era então comandada por dona Camé e Sabá Boca, na sede do salão de festas Itamarati (que já foi, em 1983, a escola Divino Espírito Santo e hoje é uma residência particular), na rua Magalhães Barata, no bairro do Porto de Cima. Esta quadrilha era predominantemente composta por adolescentes entre doze e quinze anos, embora alguns jovens também participassem. Havia, em média, dezoito a vinte pares que brincavam São João, com música própria, que diziam ter herdado já de outra quadrilha, anterior e de mesmo nome.
Nestas quadrilhas, das quais as “Duquezinhas do Amor” são um exemplo, havia os brincantes, o marcador e o casamento – momento de humor da festa – que era composto pelos noivos, pais e mães dos noivos e o padre. As roupas eram feitas na casa de cada brincante, através de mecanismos de conhecimento comum: colavam ou costuravam bandeirinhas em suas camisas, além de tiras de pano em calças jeans “mais surradas”, como diz Luís Tala, e brincavam descalços ou de chinelo de dedo.
Além das festividades de bairro, como as citadas anteriormente – que engajavam majoritariamente o público do lugar –, havia os eventos de apelo municipal, tal como o próprio São João (14 – 24 de junho) e a festa junina em que se apresentava a quadrilha do seu Rubens Abecassis e dona Elza Alencar, que ocorria em cada dia 30 de junho (posterior, portanto, às festas de São João) em frente à mercearia São Benedito, na rua 6 de Julho, e apresentavam a dança de quadrilha, fogueira, pau de sebo e praticava distribuição de munguzá, mingau de arroz e mingau de milho.
Desta prática disseminada de brincadeiras de quadrilhas, em diversas escalas, que surge o movimento que hoje conhecemos como Festival de Quadrilhas Folclóricas de Faro. A história de seu desmembramento do calendário das festas de São João comporta duas narrativas: por um lado, dizem, em Faro, que por causa do crescimento da festa, do aumento quantitativo do público, o festival de quadrilhas juninas foi ganhando contornos próprios nos eventos de São João até o ponto de se tornar uma festividade à parte, embora ligado em suas raízes às comemorações do santo padroeiro do município; por outro lado, dizem também que eram comuns as discussões e brigas entre os integrantes e torcedores das quadrilhas, por causa do resultado da disputa. Uma destas brigas, a de 2005, teve que ser contida pela autoridade do pároco da época, que proibiu a realização do festival de quadrilhas juninas na praça de São João Batista.
De tal proibição, as quadrilhas se apresentaram, no ano seguinte, na quadra poliesportiva Cleber Campos D’antona, já em data distinta das festividades juninas. Paralelo a esta narrativa de proibição, há uma narrativa de mobilização coletiva dos marcadores e presidentes de cada quadrilha que no ano de 2006 se juntaram para solicitar da prefeitura a valorização da cultura popular através da instituição do festival de quadrilhas, que este festival pudesse entrar no calendário de eventos folclóricos da cidade. A tentativa havia sido recusada com o gestor anterior, e encontrou apoio, portanto, neste ano. Para tanto, conta Sivaldo Batalha, que fora preciso destituir o festival folclórico das escolas municipais em prol da realização de festival das quadrilhas. Em negociação, as escolas ficaram com as vendas no local, para que não saíssem prejudicadas.
O sucesso foi tanto que a quadra se mostrou um lugar pequeno para comportar o evento, tendo sido transferido nas outras edições para o Ginásio Municipal Lucas Bentes de Carvalho, onde ocorre até hoje. Esta mudança, decorrente do desmembramento do festival em relação ao calendário de São João, tem provocado significativas mudanças no evento, visto que o nível de competição atualmente exige organização e ensaio com meses de antecedência, geralmente tendo início depois do carnaval e culminando no final de julho, ou início de agosto, na noite do festival de quadrilhas folclóricas de Faro.
Como expressão do sucesso das quadrilhas folclóricas estão os convites que anualmente são feitos a cada uma delas para apresentar-se em localidades próximas como na cidade vizinha Nhamundá, em Óbidos, Terra Santa, Trombetas e nas comunidades ribeirinhas de Ubim e em Macaranã, distrito de Faro, com viagens feitas de barco, geralmente.
A malha de influências sobre as quais as quadrilhas folclóricas têm buscado inspiração integra circuitos regionais, recentemente tendo incorporado a participação de coreógrafos do Boi de Parintins, além de introduzirem aspectos de abrangência nacional, adotando como referência os “destaques” presentes nos desfiles de carnaval do Rio de Janeiro. Desta forma, “alegorias”, “rainha”, porta-estandarte” se somam ao “casal caipira”, “cordão” e “torcida” entre os itens avaliados, contemporaneamente, por jure técnico formado por convidados da organização.
A institucionalização do Festival de Quadrilhas Folclóricas de Faro incorporou, entre seus agentes, o poder público municipal e a empresa de maior capital que atua na região, a Mineração Rio do Norte (MRN). Por um lado, a prefeitura mobiliza suas secretarias para organizar o festival, propondo as datas de ensaio no ginásio (secretaria de cultura), fomentando a criatividade através de transferência de recursos (aproximadamente R$: 1.000,00 divididos para as quatro quadrilhas presentemente atuantes) por meio da secretaria de finanças, manutenção da estrutura física onde ocorre o festival (secretaria de obras) e prontidão das equipes e equipamentos de saúde do município para atender qualquer urgência no festival (secretaria de saúde). Por outro, a MRN colabora com doação de R$: 2.000,00 a 3.000,00 para que aconteçam os festivais.
No entanto, embora haja participação destes agentes, os valores envolvidos no Festival superam em muito o que eles ofertam. Cada quadrilha chega a destinar em média R$: 15.000,00 ou R$: 20.000,00; havendo relatos de situação em que uma quadrilha chegou a destinar R$: 27.000,00 para sua apresentação no festival. Estes recursos implicam na compra dos tecidos – atualmente cetim –, pedraria, confecção das alegorias, portais e adereços que compõem o enredo apresentado no dia do festival, além de remunerar a parte não voluntária da mão de obra técnica e artística que realiza estes serviços.
A captação destes recursos ocorre por doação pessoal de gente vinculada emocionalmente às quadrilhas, de empréstimos bancários e através de eventos que objetivam angariar recursos, tais como: vendas de comida, bingos, torneios de pênalti e torneios de futebol. Estas atividades ocupam todo o primeiro semestre de cada ano e ativam os vínculos comunitários dos munícipes para realizarem um Festival a cada ano mais “abrilhantado” e, como se percebe, estes vínculos são, em síntese, a premiação mais duradoura que o município colhe do Festival de Quadrilhas Folclóricas de Faro.
Referências:
ANJOS, Sivaldo Batalha dos. Entrevista concedida para este projeto em 26/04/2021.
COSTA, Felipe Afonso dos Anjos. Entrevista concedida para este projeto em 17/04/2021.
DUQUE, Aldair. Entrevista concedida para este projeto em 29/04/2021.
DANTAS, Elgles. Manifestações culturais no espaço geográfico: o estudo do festival folclórico de quadrilhas de Faro-PA. Universidade Estadual do Amazonas (monografia), 2015.
FARO, Câmara Municipal. Lei 0437/2017, Declara o “Festival de Quadrilha Folclórica de Faro” como Patrimônio cultural, imaterial e histórico do Município de Faro Estado do Pará. Disponível em: https://camarafaro.pa.gov.br/arquivos/42/_0000001.pdf
FERREIRA, Valcicléa Barbosa. Entrevista concedida para este projeto em 06/04/2021.
MOREIRA, Neomênia Santos. Que quadrilha é essa? Busca por sentidos em uma dança em transformação. 2019. 54p. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação) – Licenciatura em Dança, Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia de Goiás, Goiania, 2018.
PINTO, Iolene. Entrevista concedida para este projeto em 03/05/2021.
RANGEL, Lúcia Helena Vitalli. Festas juninas, festas de São João: origens, tradições e história / – São Paulo: PublishingSolutions, 2008.
RODRIGUES, Luís. Entrevista concedida para este projeto em 12/04/2021.


